A COR DO CRIME
Enquanto dirigia pelas ruas de Goiânia, João Pedro
gostava de pensar em banalidades, “para espairecer”, dizia. A bordo de seu
carro, quase nunca ligava o som. Ele ficava sempre atento aos barulhos
externos, pois esses poderiam indicar a aproximação de alguém ou de algum
perigo. “É mais fácil ouvir o guinchar dos pneus de outro veículo, ou uma
buzina, ou a sirene de uma viatura ou de uma ambulância.” Confidenciava aos
amigos sua técnica para um trânsito mais seguro. Sempre tentava manter uma
velocidade discreta, para assim não chamar a atenção de policiais e muito menos
de bandidos e era o que ele fazia naquela noite, quase madrugada, conduzindo
seu veículo numa velocidade entre 40 e 45 Km/h. desta forma pôde ver, com boa
antecedência, as luzes de uma blitz policial.
“Bem,
vamos ver como está o prestigio de meus irmãos”, pensou confiante, seguindo em
direção ao bloqueio. Como a rua estava praticamente vazia—apenas um carro ia à
sua frente e, pelo retrovisor viu os faróis de outro que o seguia a uma
distância considerável— ele, então, teve certeza de que seria parado. Ligou a
seta e começou a levar seu automóvel para a direita e diminuiu a velocidade
ainda mais! Ainda a certa distância, viu que havia três viaturas naquela
operação e as luzes de seus giroflex invadiam
o interior de seu carro e seus olhos. Ao se aproximar, um policial mandou-o
parar.
—Boa
noite, senhor. Por favor, desça do veículo.—Disse o policial, necessitando se
abaixar, divido a sua avantajada estatura, segurando uma lanterna com a mão
esquerda, direcionando seu facho aos olhos de João Pedro e a mão direita sobre
sua arma, que ainda repousava no coldre.
O
rapaz destravou o cinto e abriu a porta para obedecer à ordem, quando fora
reconhecido:
—João
Pedro?—Perguntou o policial.
—Sim.—Respondeu
prontamente—E ai? Tudo bem Gonçalves?—Chamou-o pelo nome, uma vez que o
conhecia também.
—Eu
estaria bem mesmo se estivesse em casa, com minha esposa, ou pelo menos no
quartel, mas você sabe como é, né? Somos como escoteiros...sempre alerta!—Disse
sorrindo.
—Mas
isto aqui é só rotina, né?—Pergunto João Pedro, referindo-se a blitz.
—Nada!
Um “bacana” desapareceu e as ordens são para ficarmos aqui até as 06h00m da
manhã...vai que o cidadão resolva passar por aqui.—Disse, coçando a cabeça, um
tanto insatisfeito.
—Puta-que-pariu!
Agora é 01h30m! Vocês tão ferrados! Num frio desses? Cara, você tá mais branco
que já é!—Espantou-se, vendo que o amigo e seus colegas sofriam com o frio, mesmo
utilizando os pesados casacos do fardamento—Mas quem é o cara? Pode me
dizer?—Perguntou.
—O
nome eu não sei...não me lembro e quer saber? Nem ligo. Mas a foto dele tá
aqui. Quer ver?
—Posso?—Perguntou
interessado.
—Claro
que sim.—Respondeu o policial, caminhando em direção a viatura, sendo seguido
por João Pedro, enquanto um colega seu dava ordens para que outro aventureiro
noturno parasse seu carro.—Assim se você o reconhecer, pode até me dizer o
nome.
—É
mesmo!—Concordou, olhando para o céu, procurando a lua, enquanto acompanhava seu
amigo policial.
Caminharam
alguns metros até chegarem à viatura. João Pedro estava tranquilo e dessa forma
permaneceu.
—É
este aqui.—Disse o sargento Gonçalves, entregando a foto, uma foto grande, impressa
em papel ofício.—Ele é dono de uma transportadora...o cara tem
grana...—Concluiu vagamente, como se aquela informação não possuísse nenhuma
importância para ele.
—Já
vi esse cara, ele é muito conhecido!—Revelou João Pedro, após analisar a foto
sob o facho da lanterna.—O nome dele é Romualdo, dono da 3R, aquela
transportadora grande na saída pra São Paulo! Sabe dela?—Perguntou, como se
perguntasse sobre o aeroporto ou a rodoviária, mostrando que a empresa era
mesmo conhecida.
—Sei
sim! Ela é grande pra caramba! O cara tem dinheiro mesmo, então!—Concordou o
policial.
—Pois
é...mas o que aconteceu?—Indagou João Pedro, olhando em volta e vendo que havia,
naquele momento, três outros carros parados no bloqueio, não demonstrando muito
interesse no desaparecido.
—Cara,
ele parou numa padaria...—disse, praticamente se sentando sobre o capô da viatura
policial, ainda assim permanecendo com os dois pés no chão—dessas que ficam
abertas a noite toda sabe?—João Pedro assentiu.—Comprou alguns biscoitos, dois
sorvetes...
—Sorvetes?
Que merda!—Murmurou João Pedro, virando o rosto, interrompendo o amigo por
alguns segundos.
—Como
é? O que você disse?—Quis saber o sargento, cerrando os olhos, dando mais
ênfase à pergunta.
—Nada
não.—Disfarçou, buscando seu celular no bolso do paletó e olhando as horas.
—Então...ele
comprou algumas coisas, saiu caminhando da panificadora... porém não entrou em
seu carro!—Falou, fazendo um gesto com as mãos, como os mágicos quando fazem
algum objeto desaparecer.
—Como
assim?—Perguntou, desviando seu olhar, que do celular passou ao céu, indo
depois para o militar.
—Ele
simplesmente desapareceu! Uma pessoa ligou para o 190 e disse ter visto um
homem colocando outro no porta-malas de um carro...um sequestro...sabe como é,
né?
—E...?—João Pedro quis mais
detalhes, se aproximando do militar.
—Essa
testemunha disse ter presenciado o fato nas proximidades da panificadora que o
“desaparecido” frequenta...
—E...?—Novamente
João Pedro buscava detalhes e novamente interrompia o sargento e novamente se
aproximava um pouco mais.
—Bem,
isto é tudo o que nos foi passado. A testemunha disse que não sabe o modelo,
nem a marca do carro em que o homem foi colocado, mas disse que era um “carrão”
coreano...agora te pergunto...o cara não sabe qual o modelo, não sabe a marca,
mas disse que é um coreano. Esse cara não sabe a diferença entre um fusca e um Fiat
147 e fica ai enchendo o saco.—Gonçalves parou de falar, olhou para o céu,
suspirou e olhou seriamente para João Pedro.—O seu é “um carrão coreano”, isso quer dizer que você é um suspeito. O que faz na
rua à uma hora destas? Por favor, senhor, abra o porta-malas...preciso
verificar se não há um homem sequestrado em seu interior!
João
Pedro gelou, ficou sem palavras e tentava a todo custo disfarçar seu espanto e
ainda com os olhos arregalados ouviu Gonçalves continuar:
—Tá
vendo, João? Que testemunha é essa? Você acha que a PM tem tempo para ficar
“parando” todos os carros coreanos da cidade? Eu pelo menos não tenho tempo,
paciência, idade e muito menos saúde pra isso!—O rapaz balançava a cabeça
concordando, mesmo sem entender o que o amigo dizia, ou por que dizia.— E agora
temos que ficar aqui, procurando por alguém que talvez esteja em um quarto de
motel com alguma puta...
—Como
assim?—Perguntou outra vez, já com o coração aliviado, percebendo que o militar
apenas brincara em tom de desabafo.
—Cara,
eu já vi tanta desculpa esfarrapada para arranjar tempo pra sair com a amante,
que nem me espanto mais. Certa vez atendemos uma ocorrência em um motel. Uma
mulher queria matar o marido e a amante dele...o cara até comprou passagens e
pagou hotel, dizendo pra esposa que iria a São Paulo para uma reunião...mas a
esposa descobriu que ele só queria um “tempinho” com a amante e quase deu
morte. Se não fosse o pessoal da recepção nos chamar, ela teria matado os dois!
Então não me espantaria se o nosso “desaparecido” tiver somente forjado um
sequestro, pra poder passar a noite com uma vagabunda qualquer...acontece muito
disso.—Disse, olhando outra vez para o céu e balançando a cabeça de um lado
para o outro.—Mas e você? Como está? Tá tudo bem?
—Sim,
por quê?—Perguntou João Pedro, sem entender o motivo da pergunta.
—Agorinha
mesmo, enquanto conversávamos, você disse um “merda” bem nervoso! Pensei que houvesse acontecido algo ruim.
—Você
não iria acreditar mesmo, Gonçalves!—Disse, apanhando o celular no bolso e
selecionando uma foto.—Não era nada, não! Só que eu tenho que ir...gostaria de
ficar aqui, até amanhecer, batendo papo contigo, sabe?...ajudando no que fosse possível—Disse
sarcasticamente—mas realmente tenho que ir. Dê uma olhada nesta foto...ela tá
me esperando.—Explicou-se, mostrando a foto de uma bela garota, enquanto sorria
para o amigo.
—Cara,
não perde tempo aqui, não! Vá embora logo!—Respondeu Gonçalves, batendo no
ombro do amigo e se levantando do capô da viatura.—É bem provável que aqui você
não consiga uma gata dessas...—gargalhou—vai lá, perde tempo comigo não!
—Vou
nessa!—Falou, já entrando no carro.—Espero que encontrem esse filha da puta
logo, pra vocês poderem sair desse frio...
—Cara,
se encontrarem pode ter certeza que irei “encostar” em algum puteiro pra dar
uma esquentada...vai lá! Ela é muito gatinha pra ficar na mão!—Concluiu, com o veículo
do amigo já em movimento.
João
Pedro saiu calmamente e antes que pudesse se ater ao volante por completo, viu
numa viatura que acabara de chegar, outro amigo seu. O tenente Farias ainda não
havia descido do carro policial quando João Pedro deixava o local da blitz,
contudo, mesmo de dentro do automóvel, fez um sinal de positivo com o polegar
direito, que foi respondido por João Pedro com um gesto como que batesse
continência, que também foi visto pelo jovem soldado que conduzia a viatura.
—Ele
é policial, tenente?—Perguntou o curioso soldado.
—Sim...ele
é lá do sétimo batalhão...—respondeu o tenente, despretensiosamente, querendo encerrar
o assunto.